E agora, Claudião ? (2020)


Oi Claudião, como você está ?


Faz tanto tempo desde a última vez que falamos. Dia difícil aquele, né ?

Infelizmente, hoje também...

Aliás, Claudião, 2020 tem sido um ano difícil para todo mundo, sabia? De repente, o mundo se transformou em algo que, até então, só tínhamos visto em filmes. De uma hora para outra, nossos dias foram encobertos pela sombra da morte, do medo, de incertezas e dor. Mais para uns. Menos para outros. Mas com certeza para todos. No meu caso, talvez seja este o ano mais difícil de todos os meus 43.

Mas eu tenho a impressão de que você já sabe disso tudo, não é ? E sabe, principalmente, o motivo pelo qual estou escrevendo...

Talvez saiba, também, o motivo pelo qual eu não consegui escrever uma única linha sobre isso até agora. Saiba o porque eu, que já escrevi sobre várias pessoas neste espaço, depois de oito meses, ainda não ter conseguido escrever nada.

O motivo, eu mesmo não sei...

O que sei, Claudião, é que me lembrei de você hoje... lembrei da última conversa que tivemos e que procurei eternizar neste espaço. Por alguma razão, senti que talvez seja este o momento de (pelo menos tentar) escrever algo. Não sei o rumo que esta conversa vai tomar. Não sei nem se vou conseguir terminá-la. Se conseguir, não sei se será suficiente ou se haverá outras. Só sei que, não importa o que eu escreva nas próximas linhas, você vai entender... por isso, é para você essa carta.

Dia 8/3/2020 foi o dia mais estranho da minha vida. Chegou para mim o dia que a gente vive achando que não vai chegar tão cedo ou pelo menos vive como se nunca fosse chegar. O dia em que a gente perde um pai. Foi um dia em que praticamente nem consegui chorar. Simplesmente, porque não parecia que era o meu pai. Parecia ser uma outra pessoa que eu estava acompanhando (como já fiz tantas outras vezes) e que depois que tudo aquilo passasse, eu ligaria para ele pra contar os detalhes de tudo que tinha acontecido. Sabe como é, Claudião ?

Acontece que, fisicamente, ele não vinha bem há algum tempo sabe, Claudião ? Houve um sensível agravamento da condição cardíaca dele até chegar o ponto em que o corpo dele não aguentou mais. Mas, psicologicamente, segundo minha mãe, desde que você partiu, ele nunca mais foi o mesmo... Ele sentiu e sentia demais a sua falta.

Não sei se quero entrar em detalhes do que ele vinha passando nos últimos tempos. Mas ele praticamente não conseguia dormir. Ele sentia muita falta de ar por causa da insuficiência cardíaca. Por isso, ele estava muito cansado, cada vez mais abatido e sem forças. Ele até tentou alguns tratamentos na cidade dele mas receio que os diagnósticos não tenham sido muito precisos. Isso acabou levando à um agravamento do seu quadro até o ponto de ser necessário uma internação para cuidados mais intensos.

Na minha última conversa com ele, durante a visita, depois da internação, ele estava contente e com uma aparência boa. E ele me disse:

- "Agora sim! Finalmente estou recebendo um bom atendimento. Estou respirando bem, não estou sentindo dores. Era isso que eu precisava! Pode ficar tranquilo que agora eu estou bem."

Jamais eu poderia imaginar que aquela seria a última vez que conversaria com ele, nem que aquelas, praticamente, seriam suas últimas palavras comigo.

Mas ele piorou bastante durante a noite. Precisou ser sedado e respirar com ajuda de aparelhos. Na visita do dia seguinte, quando o vi, senti que ele não estava mais lá. Entende o que eu digo, Claudião ? O corpo dele estava lá, mas era uma máquina que respirava por ele. Até falei com ele, queria perceber alguma reação dele ao ouvir a minha voz, um sinal, um espasmo, qualquer coisa. Mas eu realmente senti que ele não estava mais lá. Um pouco mais tarde, ligaram do hospital. Não disseram o que havia acontecido e nem precisava. Só pediram para um familiar comparecer com os documentos. Ele teve duas paradas. Foi reanimado, mas não resistiu à terceira. E o pior aconteceu, Claudião.

Do lado de fora da enfermaria onde ele estava, enquanto o médico explicava o que havia acontecido, a porta se abriu por um instante, enquanto alguém entrava ou saia e foi possível ver que removiam um corpo (devidamente coberto). Era o local onde ele estava e onde eu o havia visto algumas horas antes. Estava consumado, Claudião. Tudo que eu via e ouvia ali confirmavam o mais amargo e terrível episódio da minha vida. Eu acabava de perder o meu pai.

Eu acho não soube como lidar com aquilo na hora. Provavelmente também não soube como lidar com aquilo nas horas seguintes. Acho que simplesmente racionalizei tudo e fiz o que tinha que fazer: cuidei das providencias. Como já havia feito várias outras vezes. Afinal, como já disse, não parecia ser ele. Não parecia real. E mesmo agora, 8 meses depois, acho que ainda não estou estou sabendo lidar...

Eu já escrevi sobre muita coisa e este espaço é prova disso. Mas o que se escreve sobre um pai? Como descrever uma convivência de 42 anos e a importância de um pai ? Acredito que a resposta esteja em até que ponto estamos dispostos a nos expor. E esta resposta eu ainda não tenho.

O que posso dizer agora é que meu pai era um homem organizado, silencioso, contido e tímido nas suas demonstrações de afeto. (Característica que devo ter herdado dele). Mas isso nunca foi motivo para que eu duvidasse do amor dele por nós. Tinha um senso de humor igualmente tímido mas exato e afiado. Extremamente engenhoso e criativo nas resoluções e reparos de problemas domésticos e apaixonado pelo Corinthians.

Mas a imagem de seu corpo inerte num caixão me atingiu como nunca antes e de forma definitiva, como um atestado da irreversibilidade e da finitude das coisas, incluindo a minha própria.

E o que acontece agora é que sou portador de um monte de lembranças que ficam girando na minha cabeça sem que eu saiba o que fazer com elas. É como se, antes, todas essas lembranças ficassem guardadas num arquivo devidamente organizado onde eu pudesse acessá-las por data ou ordem alfabética, sempre que quisesse ou precisasse e, agora, eu estivesse no olho de um furacão de lembranças e perdido a capacidade de organizar aquilo tudo novamente.

Uma sensação como se uma informação importante estivesse sob minha responsabilidade mas sob o risco de se perder para sempre se algo acontecer comigo.

Claudião, tudo isso ainda está meio bagunçado na minha cabeça e este texto demonstra isso. Mas estou escrevendo numa tentativa de aliviar essa pressão que comprime o meu peito.

Este é um ano dolorido sob todos os aspectos. A pandemia me roubou o direito de lamentar a perda do meu pai como eu deveria (se é que isso existe), pois menos de uma semana depois de sua passagem, fomos todos jogados numa quarentena e cobertos por um manto de medo ininterrupto de perdermos ainda mais. Um medo que paira no ar há oito meses e sabe-se lá quanto tempo mais ainda irá permanecer.

Sabe, Claudião. O que sinto hoje é uma falta daquelas mensagens de áudio monossilábicas, que cessaram de uma hora pra outra e do silêncio carregado de uma presença paterna tranquilizadora que também desapareceu. Tudo isso deu lugar a uma inércia dolorida e um tumulto no coração. Todos estes sentimentos potencializados por um 2020 doente e carregado de lamento, lágrimas e uma interminável contagem de mortos.

Claudião, acho que vou parar por aqui... perdão por terminar assim. Não era minha intenção.

Depois de todo esse tempo, a pergunta que fica ainda é a mesma: E agora, Claudião ?

Se você o vir em algum lugar por aí, por favor mande um beijo e diga-lhe que eu sinto muito...

Meu eterno agradecimento aos que estiveram comigo neste dia tão difícil. Muito obrigado.

Em memória de:
 
Wilson Roberto Fonseca 15/09/1954 - 08/03/2020
José Claudio Fonseca 26/04/1951 - 18/05/2008

PS: Este texto é uma referência à um texto que escrevi em 2008, quando da passagem do meu tio Claudio e que pode ser lido AQUI
 
Obrigado por ler até aqui!
Até a próxima!
Fabior
 
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1 Comentários

  1. Senhor do Universo: ao longo da vida fui devolvendo a Ti muitos do que amei. Que hoje, eu possa levar a todos eles meu pensamento de ternura e gratidão, para que saibam, estejam onde estiverem, que não estão esquecidos na Terra, habitando em minha lembrança e em meu coração com a mesma força e a mesma sinceridade de antes! O amor que nos une será para sempre!

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